Sobre os Organismos Transgênicos: uma introdução sobre o estudo acerca da cobertura da revista “Veja”
Por Rodrigo de Oliveira Andrade
Durante os últimos meses, me propus a analisar questões que, de alguma forma, se relacionavam com o jornalismo, ou com a mídia de um modo geral. Bem, hoje não será diferente. No entanto, o texto a seguir tem um algo a mais bem especial: trata-se do meu pré-projeto de conclusão de curso. Nesse sentido, me preocuparei, desta vez, em explicar como será a pesquisa que realizarei no decorrer dos próximos meses. Mas, antes, a contextualizarei, de modo a preparar o leitor para o tema em si.
Sobre os Organismos Transgênicos Há tempos que o ser humano, ao abandonar sua característica nômade, seleciona os alimentos que lhe são úteis à sobrevivência. Foi a partir desse processo de triagem natural que muitos organismos, fruto de mutações resultantes de cruzamento de espécies, surgiram, dando origem a uma série de alimentos que hoje compõem nossa dieta alimentar. Todavia, foi a partir da década de 1970, quando os pesquisadores estadunidenses Stanley Cohen, da Universidade de Stanford, e Herbert Boyer, da Universidade da Califórnia, reataram trechos do DNA de uma bactéria, depois de terem incluído em sua seqüência um gene de sapo, que tal prática, agora definida como seleção artificial por meio de reestruturação genética, se “popularizou” entre os geneticistas, que passaram a manipular e interferir no código genético de organismos vivos, dando início a era da biotecnologia moderna[1]. Contemporaneamente, no entanto, as manipulações genéticas de plantas e animais resumem-se, majoritariamente, à adição, subtração, substituição e modificação de genes. À esta técnica, atribuímos a terminologia “Transgenia”, definida como ato de recombinação genética que anexa à um organismos genes que, biologicamente, não lhes pertenciam, a fim de produzir em seus descendentes características adicionais às que compunham seu código genético natural. Nesse sentido, entende-se por “Transgene” o gene adicional, e por “Transgênico” o organismo resultante desse processo de reestruturação genética. A polêmica acerca dos produtos transgênicos, em especial no que se refere à sua aplicação na agricultura, fundamenta-se, principalmente, na falta de informações corretas, baseadas em trabalhos de pesquisa que esclareçam as principais dúvidas do público leigo quanto aos riscos da inserção desses organismos em sua dieta alimentícia. Apesar de haver um forte investimento em estudos, por parte do governo e do setor privado, com vistas à possibilidade de obter novas descobertas de valor científico e econômico, ainda são desconhecidos os caminhos pelos quais o atual modelo de desenvolvimento agrícola seguirá, bem como os efeitos da alteração genética de plantas e alimentos sobre a saúde humana e o meio ambiente. Nesse sentido, se levarmos em consideração o fato de o debate criado em torno das questões da biotecnologia – “ciência multidisciplinar que integra diversas áreas do conhecimento, como a genética, a microbiologia, a bioquímica, a engenharia química e a engenharia genética, de modo a permitir o uso de organismos vivos ou partes destes para produzir ou modificar produtos, alterar geneticamente plantas ou animais e desenvolver microorganismos para fins específicos” (ABREU, 2006) – estar estritamente relacionado a argumentos de natureza científica, técnica, ética, política e, principalmente, econômica, concluiremos que muitas das opiniões, notícias e, até mesmo, pesquisas, que fortalecem o discurso daqueles que defendem a liberação de produtos transgênicos no Brasil e no mundo, escondem interesses alheios aos da população. Exemplo disso é o caso da Food and Drugs Administration (FDA) e da Enviroment Protection Agency (EPA), que, por serem conhecidas pelo rigor de suas análises, deram parecer favorável à produção comercial de produtos transgênicos nos Estados Unidos da América (EUA). No entanto, já começaram a surgir contestações às decisões desses órgãos, uma vez que seus testes teriam sido financiados por corporações econômicas interessadas na comercialização desses produtos.
Historicamente, o primeiro país no mundo a comercializar organismos geneticamente modificadas (OGM) foi a China, no início da década de 1990. Cinco anos mais tarde, em 1995, os EUA concederam à empresa de biotecnologia Calgene Co., de Davis, na Califórnia, parecer favorável à produção comercial de plantas transgênicas. De acordo com Bonetti (2001), além da China e dos EUA, outros países, como a Argentina, Canadá, Austrália, México, Espanha, França e África do Sul, também cultivam plantas transgênicas. Apesar disso, até 1998, a produção de soja transgênica era dominada por apenas quatro países, que respondiam, na época, a 88% da colheita mundial de 154,7 milhões de toneladas de grãos: EUA (47%), Brasil (20%), Argentina (11%) e China (10%) (LEITE, 1999). Segundo o Serviço Internacional para a Aquisição de Aplicações de Agrobiotecnologia, mesmo com as divergências de opiniões sobre a comercialização desses produtos, “a área global de cultivo de transgênicos em 1999 cresceu 44% em relação a 1998, passando de 27,8 para 39,9 milhões de hectares” (BONETTI, 2001, p. 97).
No Brasil, a polêmica em torno dos OGM se instaurou em 1998, quando incorporou-se à pauta de análise da Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio) um pedido de licença da empresa Monsanto do Brasil Ltda. para o plantio comercial de genótipos desenvolvidos por meio de manipulação genética. Em junho daquele ano, a Monsanto entrou com outro pedido junto à CTNBio, solicitando, desta vez, a liberação, por parte da Comissão, para a comercialização da soja Roundup Ready, variedade resistente ao herbicida Roundup – genericamente conhecido como “glifosato” –, cujo potencial de periculosidade ambiental possui nível III, isto é, perigoso ao meio ambiente. Em 24 de setembro de 1998, apesar de uma liminar obtida pelo Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec) e pela organização ambientalista global Greenpeace, que determinava a interrupção do plantio da soja transgênica, a CTNBio emitiu parecer favorável ao pedido da Monsanto, alegando que a população, do ponto de vista da biossegurança, não tinha o que temer e que outros aspectos de licenciamento ficariam, à partir de então, a critério do Ministério da Agricultura, que aprovou, por sua vez, em junho 1999, o cultivo comercial de cinco variedades transgênicas de soja, desenvolvidas, à época, pela empresa Monsoy Ltda., ligada à Monsanto. Atualmente, dois grupos, com opiniões distintas, compõem o debate em torno dos OGM. O primeiro apóia-se na tese da necessidade do aumento da produção alimentícia, frente ao crescimento populacional mundial. Para esse grupo, somente uma Revolução Verde, “agora ancorada nas ‘ciências da vida’, na biotecnologia e na engenharia genética, seria capaz de incrementar a produtividade do setor agropecuário e reduzir o custo de seus produtos, tornando-os viáveis ao consumo” (SIQUEIRA; FREIXO; ABREU, 2004), haja vista que aumentaria a produção e a produtividade agrícola. Além disso, outra suposta característica atribuída aos alimentos transgênicos é a de serem mais nutritivos que os convencionais, como o arroz dourado, que teria, de acordo com a reportagem “Transgênicos: faltam pesquisas para avaliar o real risco à saúde”, publicada na Revista Eletrônica de Jornalismo Científico (ComCiência), do Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo (Labjor) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), grandes quantidades de betacaroteno, substância que origina a vitamina “A”. Outros alimentos podem agregar, ainda, genes responsáveis pela produção de hormônios ou substâncias que ajudam a evitar doenças, como o tomate transgênico, que produz flavonóides (um tipo de antioxidante) em grandes quantidades.
Do outro lado, todavia, encontram-se os que pregam os possíveis efeitos da alteração genética de alimentos sobre a saúde humana e o meio ambiente. Dentre os principais riscos da inserção de um ou mais genes no código genético de um organismo estaria a produção de novas proteínas alergênicas e/ou de substâncias que provocam efeitos tóxicos não identificados em testes preliminares. De acordo com um estudo publicado no Journal of Medicinal Food, a soja transgênica, tratada com o herbicida Roundup Ready, apresenta concentrações significativamente menores de fitoestrogênios, o que acaba por comprometer o valor nutricional da soja para aqueles que preferem o consumo da substância, tida como eficaz na proteção contra o câncer de mama e a osteoporose.
O fato é que, nas últimas três décadas, a biotecnologia vem se destacando em dois pontos: 1º Por inserir em nosso cotidiano, a partir da revolução provocada pela engenharia genética de Cohen e Boyer, uma série de produtos biotecnológicos, tanto na área da saúde – como a produção de insulina para diabéticos; de interferons, substâncias usadas no tratamento de câncer e de infecções virais; e de vacinas contra a hepatite “B” –, quanto na do meio-ambiente, sendo utilizada como importante ferramenta no processo de minimização dos problemas ambientais, por meio da transformação microbiana de resíduos e na criação de plásticos biodegradáveis; e 2º Por fomentar a discórdia entre políticos, ambientalistas e empresários, que, focados nos benefícios projetados pelos transgênicos, ignoram as preocupações de outros pesquisadores quanto aos possíveis efeitos dos OGM sobre a saúde humana e o meio ambiente. Tal discrepância fez deste campo multidisciplinar, ao mesmo tempo, um dos mais promissores e polêmicos gêneros de pesquisa do final do século XX.
No entanto, apesar de os métodos de pesquisa tradicionais, utilizados pelos cientistas, serem, como afirma Burkett (1990), alterados pelas pessoas responsáveis pela emissão de cheques destinados ao desenvolvimento da ciência, isto é, a sociedade, que financia estudos científicos por meio do pagamento de impostos, ainda é inócua a participação popular na tomada de decisões de caráter científico e tecnológico no Brasil:
“Estamos acostumados a confiar as decisões de cunho científico aos especialistas. Entretanto, muitas questões consideradas técnicas envolvem julgamentos de valor. Situações que ameaçam, por exemplo, a segurança do homem e do ambiente não podem ser analisadas apenas sob a perspectiva científica. Correr ou não determinados riscos é uma opção que transcende as fronteiras técnicas e pede um debate mais amplo” (Ivanissevich In BOAS, 2005, p. 24).
Para isso, há de ser de domínio público fundamentos básicos da ciência. No caso dos transgênicos, por exemplo, é de suma importância que o público, para participar do debate acerca da comercialização desses organismos, compreenda, a priori, os conceitos de biotecnologia, DNA, RNA, genes e proteína; a estrutura do código genético, bem como suas bases nitrogenadas; o processo de divisão celular e a técnica do DNA recombinante de Cohen e Boyer. Todavia, segundo Savernini e Vígolo (2007), grande parcela da população mundial não possui uma cultura científica[2] mínima para participar desse debate. Nesse sentido, cabe ao jornalismo, principalmente o científico, o papel de difusor do conhecimento científico entre o grande público, haja vista que, segundo Burkett, a redação científica educa, em vários níveis, adultos, cuja educação formal termina no 2º grau ou na faculdade, e crianças, em relação ao mundo natural que as cerca além de seu ambiente imediato. Assim, “à medida que os escritores de ciência espalham informações fora do núcleo das disciplinas científicas, a ciência perde alguma precisão e muito do jargão técnico. (…) Logo, a ciência se populariza. (…) Mulheres, homens e crianças, hoje, (…) têm pouco incentivo para mergulharem na prosa indigesta da ciência, que pouco significado oferece às suas vidas cotidianas. Os escritores de ciência provêem o significado para seu público particular. Isso é parte do processo de tradução freqüentemente omitido nos discursos formais e nos trabalhos escritos por cientistas” (BURKETT, 1990, p.8)
Desse modo, tal prática, a do jornalismo científico, cujos objetivos visam despertar o interesse da população pelos processos da ciência, fomentar a discussão sobre política científica, iniciar jovens na área e promover a educação continuada de adultos, tem, portanto, um importante papel na disseminação de conteúdos que subsidiem o leitor em relação ao debate em torno dos alimentos transgênicos, visto que esta tecnologia, hoje, já faz-se presente no cotidiano de milhares de pessoas, no Brasil e no mundo. Em suma, se por um lado a ciência ainda não possui todas as respostas para os OGM, visto que a prática científica exige, como ressalta Ivanissevich (In BOAS, 2005), um trabalho metódico, de passos lentos, complexos e precisos, por outro, alinha-se a prática jornalística o dever de relatar e explicar sistematicamente os processos científico que tais pesquisadores adotam no decorrer de suas pesquisas e os resultados alcançados no decorrer desse processo.
Percepção Pública da Ciência e Tecnologia
De acordo com Ivanissevich (In BOAS, 2005), conceituadas pesquisas de percepção pública da Ciência e Tecnologia (C&T) realizadas na Europa nos anos de 1990 mostraram que grande parte da população utiliza-se da mídia para se informar quanto a assuntos relacionados à essas duas áreas do conhecimento. No Brasil, uma pesquisa semelhante à essa, realizada em 2006 pelo Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT), mostrou que 60% dos brasileiros se interessam por temas ligados à medicina e à saúde, sendo que 12% dos entrevistados afirmaram recorrer a revistas e jornais para se informarem sobre ciência e 9% a internet (ANTENOR, 2010).
Em São Paulo, com o objetivo de verificar tal percepção, foi realizada pelo Labjor da Unicamp, entre os anos de 2007 e 2008, uma pesquisa, que constituirá um dos capítulos da terceira edição de “Indicadores de Ciência, Tecnologia e Inovação no Estado de São Paulo”, a ser publicada pela Fundação de Amparo a Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), sobre o nível de interesse da população em relação à C&T em 33 municípios das 14 regiões administrativas do Estado, incluindo a Capital. Ao todo, dos 1.825 entrevistados, 16,3% se declaram “muito interessados” e 47,1% se disseram “interessados” pelo tema de C&T, “que alcançou um índice geral de interesse de 63,4%, à frente de Política (21,1%), Economia e Empresas (43,3%) e Cinema, Arte e Cultura (58,7%)” (ANTENOR, 2010, p.31).
Todavia, apesar dessas pesquisas desmistificarem a máxima que prega o desinteresse público para com temas ligados à C&T, grande parcela da população mundial não entendem a dimensão das últimas descobertas científica e tecnológicas. Isso faz com que o público acabe se tornando vulnerável à discursos de cunho político/econômico/ideológico falseadores da verdade, que, muitas vezes, turvam a clareza do debate e mistificam o tema em questão. Dessa maneira,
“cabe à mídia uma última função: a de possibilitar o debate sobre questões polêmicas, como aborto seletivo, a clonagem de embriões ou a comida geneticamente modificada. Não só, e principalmente, porque a mídia tem uma responsabilidade ética, mas – mais uma vez – porque assuntos desse tipo têm apelo popular e asseguram a audiência e a venda do produto.” (IVANISSEVICH in BOAS, 2005, p. 23).
Foi, em suma, tendo em vista a importância da difusão de informações que proporcionem ao leitor um melhor entendimento sobre a questão dos transgênicos, a fim de que ele possa adentrar no debate em torno da liberação da produção comercial desses organismos, que elaborei meu projeto de conclusão de curso, cujo objetivo consiste em analisar a cobertura do tema “Transgênicos” na revista “Veja” no período de 2003 a 2004 (período em que esses organismos receberam maior destaque na revista), quantificando e qualificando suas matérias a partir de bases de análise já delimitadas.
O projeto se preocupará, num primeiro momento, em delimitar a estrutura conceitual das principais terminologias da genética e da biotecnologia, explorar a evolução das práticas de transgenia, isto é, da divisão e reestruturação do DNA à inserção de genes oriundos de outros organismos em estruturas genéticas de animais, plantas, etc., discorrer, historicamente, sobre os organismos geneticamente modificados no Brasil e no mundo, apresentar os principais argumentos pró e contra os transgênicos, bem como a legislação brasileira relativa à ética e às políticas públicas em torno desses produtos, com base no livro “Lei de Biossegurança – Lei Nº 11.105, de 24.3.2005 – Clonagem e Transgênicos”, de Jair Lot Vieira, e explorar a questão da inserção desses organismos em nossa dieta alimentícia e os riscos que tal prática oferece à saúde humana e o meio ambiente. Em seguida, o estudo apresentará as bases conceituais, técnicas, históricas e éticas acerca dos transgênicos, de modo a explorar a percepção pública em torno desses organismos. A partir daí, relacionarei a polêmica em torno dos organismos geneticamente manipulados com a prática jornalística, reforçando a idéia de ser de domínio público fundamentos básicos da ciência e, principalmente, da biotecnologia. Por fim, uma vez contextualizado, histórica e conceitualmente, os transgênicos e estruturado os principais objetivos do jornalismo científico no processo de fortalecimento da, também estudada, cultura científica, passarei à análise das matérias publicadas na revista “Veja”.
Modéstia à parte, podemos atribuir a este projeto de pesquisa uma importante contribuição social, haja vista que ele debruçar-se-á sobre a análise da cobertura feita por uma das principais publicações brasileiras acerca de um dos temas mais polêmicos da contemporaneidade. Em suma, esse estudo pretende, ao seu término, ter esclarecido, àqueles que, por ventura, vierem a lê-lo, os reais métodos utilizados pela revista “Veja” para transmitir aos seus leitores as informações sobre os organismos transgênicos, de modo a contribuir para o processo de aperfeiçoamento da consciência científica crítica (Cultura Científica) da população, evitando, assim, que ela se torne passiva de manobras políticas e/ou ideológicas.
[1] Stanley Cohen, da Universidade de Stanford, e Herbert Boyer, da Universidade da Califórnia, em São Francisco, foram os primeiros, de acordo com Leite (2000), a recombinar trechos do DNA de uma bactéria após terem incluídos na seqüência um gene de rã, demonstrando, assim, que o código genético era, de fato, universal. Tal técnica foi intitulada de “DNA recombinante”. [2] “Bagagem e domínio de noções, informações e conhecimento sobre as ciências que o indivíduo apresenta. Modo de ver e relacionar conceitos, e não apenas com o nível de conhecimento conceitual, isto é, não é a profundidade do que se sabe, mas o que se pensa e se faz com aquilo que se sabe, permitindo (…) o estabelecimento das relações críticas necessárias entre os cidadãos e os valores culturais de seu tempo e sua história. Nesse sentido, cultura científica deve ser tratada como parte da cultura geral de um povo, e que precisa ser popularizada” (SAVERNINI & VÍGOLO, 2007, p.4).